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Perdão e o caminho da alteridade

  • Foto do escritor: Larissa Gontijo
    Larissa Gontijo
  • 9 de ago. de 2024
  • 17 min de leitura

1-    Introdução

Esse artigo é fruto de uma inquietação pessoal e profissional sobre o perdão e visa trazer uma reflexão sobre o tema. Busco investigar como ele se dá, quais são as diferenças e semelhanças entre perdoar o outro e a si mesmo, e as implicações para o processo de individuação.


É através das relações interpessoais que nós nos construímos como sujeitos, e nos desenvolvemos. Isso se inicia no vínculo primal, com todos os cuidados básicos que permitem a sobrevivência e depois se estende para outros vínculos construídos dentro e fora da família. Dessa forma, a existência se faz na relação Eu-Outro, e tais relações proporcionam momentos de amor, alegria e afeto, mas também de grandes decepções, mágoas e tristezas.


Por meio das nossas escolhas vamos construindo o nosso caminho e acertamos e erramos ao longo do percurso. Dessa forma, o erro ou o pecado fazem parte tanto das relações com os outros, quanto consigo mesmo. Porém, a alta velocidade em que praticamente tudo acontece na atualidade, e a quantidade enorme de informações, falsas e verdadeiras, que recebemos o tempo todo, muitas vezes não contribuem para olharmos para as relações. Dessa forma corremos o risco de passarmos por cima de sentimentos e emoções sem refletirmos a respeito. O que não significa que não existam e que não estão gerando sofrimento.


Para ilustrar o processo de individuação e como ele também passa pelos erros, assim como pelos acertos ao longo da vida, trago o Mito de Édipo.


Ao longo do trabalho irei utilizar o referencial da Psicologia Simbólica Junguiana para refletir sobre o perdão.


Perdão na perspectiva da Psicologia Simbólica Junguiana


A Psicologia Simbólica Junguiana considera que o processo de desenvolvimento humano passa pela elaboração simbólica. A seguir, irei descrever esse processo e a sua relação com o perdão.


Byington (2015) nos fala sobre cinco posições arquetípicas da consciência e compara a elaboração simbólica ao axioma de Maria Profetissa, alquimista que deu origem ao termo banho-Maria: “o um (posição indiferenciada) transforma-se no dois (posição insular), o dois no três (posição polarizada), o três no quatro (posição dialética), que é novamente o um (posição contemplativa)”. (p.141). Cada um desses 5 dinamismos psíquicos é regido por arquétipos específicos.


Na posição indiferenciada ou urobórica, regida pelo arquétipo central, a consciência se manifesta de forma unitária, ou seja, a polaridade Ego-Outro ainda não se separou. Uma situação que gera desconforto normalmente inicia um processo de elaboração simbólica e nessa etapa a situação ainda não pode ser discriminada ou explicada.


A posição seguinte é a insular, que se refere à ilha; por ser binária, nela o Ego e o Outro se relacionam de maneira setorizada, podendo, às vezes parecer não combinarem racionalmente. Por outro lado, por ser tão setorizado, muitas vezes concentra num único polo da polaridade, simbiotizando facilmente com o outro. O arquétipo regente aqui é o matriarcal, que é o arquétipo da sensualidade e da fertilidade. É considerado o arquétipo dos sentidos e da vida vegetativa, ou seja, está na base das sensações corporais.


A terceira posição é a polarizada, nela temos a abstração e coordenação das posições polarizadas Ego-Outro e Outro-Outro na consciência. O que significa que aqui temos maior capacidade de separar o joio do trigo e nos organizarmos. O Arquétipo Patriarcal que rege essa posição é dotado de uma capacidade extraordinária de organização. Por outro lado, pode restringir a espontaneidade do Self.


A posição seguinte é a dialética, que possibilita que os dois lados da polaridade se expressem, permitindo uma interpelação entre o Arquétipo Matriarcal e o Arquétipo Patriarcal, facilitando o resgate dos símbolos fixados na sombra. O Arquétipo da Alteridade, que rege essa posição, pode possibilitar a reintegração do Self dividido. Nessa etapa da elaboração simbólica temos a ampliação da consciência e o princípio da sincronicidade se manifesta mais visivelmente.


O Arquétipo da Totalidade e a posição contemplativa expressam a completude de uma elaboração simbólica. É a posição mais complexa, pois demanda uma visão sistêmica do símbolo para poder sintetizar as experiências. Tal síntese pode ser tanto a de resolução de um problema prático, quanto a elaboração do final da vida.

 

No seu trabalho, Avian (2007) traz que a polaridade pecado-perdão pode ser vivenciada em cada um dos dinamismos. A seguir irei abordar a relação dialética em cada um deles, focando principalmente na alteridade, assim como a autora o fez.

 

No dinamismo matriarcal, o pecado é experienciado pela vítima de forma visceral e a dor é muito grande, bem como o prazer de se pensar na vingança, que muitas vezes é até mesmo desproporcional ao ato cometido. O perdão é exigente, no sentido de ter uma lista a ser cumprida por quem cometeu o erro.

 

No dinamismo patriarcal, o pecado é visto como uma quebra nas regras vigentes. É como se não houvesse conserto para o que aconteceu e houvesse um certo e um errado absolutos.  Existe uma hierarquia marcada por prepotência e arrogância, que pode inclusive causar humilhação no outro.

 

Para ilustramos esses dinamismos psíquicos, podemos fazer um paralelo com uma peça artesanal que nos é cara e é quebrada por alguém que visita a nossa casa. Em um primeiro momento podemos ficar em choque, sem entender bem o que nos aconteceu (dinamismo indiferenciado). No segundo momento pode- se ter uma reação emocional desproporcional e exigir em troca uma outra peça (dinamismo matriarcal), mas o que provavelmente não irá suprir a falta da primeira peça, pois não existem dois produtos artesanais exatamente iguais.  No dinamismo patriarcal é possível que se culpe o visitante, entendendo que o que ele fez foi errado e fechando a porta da casa para ele. A peça poderá até mesmo ser colada, mas a trinca estará sempre lá representando a desconfiança.

 

Já o dinamismo da alteridade pode ser ilustrado com a arte do Kintsukuroi, uma palavra que significa “reparo com ouro”. Essa arte supera a crença de quando os objetos se quebram eles perdem o seu valor. No Japão, os praticantes dessa técnica restauram as cerâmicas deixando à mostra as partes quebradas embelezadas com ouro. Por trás dessa arte está a crença de que quando as cerâmicas se quebram, elas não perdem seu valor, pois vale a pena repará-las e é inclusive assim que o objeto mostra seu valor único e sua beleza especial.

 

O Kintsukuroi pode ser visto como um paradoxo do que vivemos na atualidade, em que as coisas são descartáveis e líquidas, como Bauman (2001) bem concluiu. Cada vez menos os objetos são reparados, e muitas vezes é mais fácil ir ao shopping center comprar um novo sapato, do que levar o sapato em bom estado para um reparo mínimo, que permitiria a sua reutilização, o que gera inclusive uma questão do ponto de vista ambiental e torna o mundo cada vez menos sustentável. O ponto é que toda essa liquidez visível nos objetos e no meio ambiente, também é muitas vezes vivida nas relações e é mais fácil descartar uma relação do que a reparar. Vide o fenômeno do Ghosting, que designa o término repentino de um relacionamento sem deixar explicações. Este termo vem do inglês, e é derivada da palavra ghost, que significa fantasma em português. Quem pratica o ghosting desaparece de uma hora para a outra sem nenhuma explicação ou cuidado com o outro.

 

Quando falamos do perdão no dinamismo da alteridade, estamos assim como no Kintsukuroi, passando por um processo de reparação, ou seja, estamos elaborando simbolicamente a quebra do vaso. Byington (2015) traz aspectos importantes sobre a elaboração simbólica que servem para pensarmos no exemplo do vaso e consequentemente do perdão. O primeiro deles é sobre a atitude ativa-passiva. De acordo com ele, os sábios dizem que “primeiro se deve ver e ouvir e depois se for o caso, começar a falar”. Essa fala traz à tona a necessidade de não assumir atitudes estereotipadas e antes de realizar qualquer ação, escutar o que o outro tem a dizer. Voltando para o vaso seria dar a chance de entender o que aconteceu e porque ele foi derrubado, antes mesmo de começar a catar os cacos. Ainda nesse sentido, Byung-Chul Han (2015) nos fala sobre estarmos vivendo na sociedade do cansaço, em que ação performática é altamente valorizada e que tem pouco ou nenhum espaço para a não ação. Dessa forma, tendemos a passar rapidamente para a atitude ativa sem dar o tempo necessário para isso, comprometendo a elaboração simbólica.  É como se a posição indiferenciada não pudesse ser respeitada e fossemos o todo tempo empurrados para um veredito ou uma ação.

 

Byington (2015) também nos fala da importância da função estruturante transcedente da imaginação para a elaboração simbólica. De acordo com ele, a “vivência de apego e de fusão com os símbolos e os arquétipos gera estados variáveis de onipotência (psicanálise) ou inflação (psicologia analítica), que podem levar a situações de grande unilateralidade e desequilíbrio no funcionamento do Self”. A imaginação é justamente o que permite ultrapassar a vivência cristalizada e polarizada, “a compensação da unilateralidade psicológica de qualquer símbolo, na vigília ou no sono, é feita pela coordenação do Arquétipo Central por intermédio da imaginação”; sem ela o símbolo fica no concreto (literal). (p.89). 

 

No caso do vaso, a imaginação integra o velho e o novo em uma peça de arte muito mais pujante do que a anterior. No caso do perdão, a pessoa que sofreu a falta pode sair da posição polarizada de passividade na vida, em que o outro tem uma posição superior de poder tudo, para uma posição de igual. Nesse sentido, a relação tem o potencial de se tornar muito mais preciosa e criativa.

 

Em um certo sentido, quem sofreu com o pecado se coloca não como responsável, mas como parte do que ocorreu. Por outro, para quem cometeu o deslize, a culpa é uma função estruturante importante para que se elabore o que aconteceu, dando espaço para a função ética a partir da ampliação de consciência. Para se chegar à culpa, a primeira coisa é aceitação do ato cometido.  É através da função avaliadora que a pessoa poderá diferenciar entre o bem e o mal, fazendo o que Byington considerou um exame de consciência. Esse processo ocorre pela centroversão; é como se o ego pudesse voltar aonde o símbolo ficou fixado para confrontar e liberar o que ficou preso. Byington (2015) caracteriza as vivências de centroversão como experiências de totalidade, que nos orientam sobre a nossa identidade única e o nosso caminho. De acordo com ele, “elas são de maior importância, sobretudo nas grandes crises existenciais, quando sentimos que perdemos o rumo” (Byington, 2015, p.97).

 

2.1-Perdão: defensivo e criativo.

 

A Psicologia Simbólica aponta para os aspectos defensivos e criativos dos símbolos e das funções estruturantes:

 

A reavaliação da natureza humana é feita nesse livro por meio da percepção de que toda e qualquer vivência pode ter um lado criativo de Luz ou um lado destrutivo de Sombra, dependendo do seu contexto existencial. Esta é a abertura para elaborarmos e melhor nos posicionarmos diante do Bem e do Mal na compreensão da vida... o ser humano se desenvolve formando Consciência e Sombra, e depende da Cultura, do autoconhecimento e da função ética para resgatar sua parte de Sombra e ampliar sua Consciência (Byington, 2002, p.9).

 

O valor positivo atribuído ao perdão pela cultura e pela religião, ilustrado pelo imperativo “é preciso perdoar para também ser perdoado” (Matheus 6:15), muitas vezes leva a uma obrigação moral em relação ao perdão, o que gera uma polarização e restringe a possibilidade de compreensão e elaboração simbólica. 

 

Como psicoterapeuta, a temática do perdão é bastante presente no trabalho clínico, seja em situações corriqueiras do dia a dia, como em situações traumáticas de vivência de abandono, violência e desrespeito.  De uma forma ou de outra a vida requer desenvolvermos estratégias para lidar com o erro e com o perdão.

 

Lembro-me de um paciente que foi abusado sexualmente pelo padrastro dos 8 aos 13 anos e que entendia que precisava perdoá-lo e ajudá-lo, uma vez que ele tinha se afundado nas drogas e na bebida. Porém, ao escutá-lo percebi que essa demanda era principalmente devido à prática religiosa da família, que frequenta uma igreja neopentecostal protestante e que, portanto, o perdão se apresentava para ele como uma obrigação moral. No início do processo, ele minimizava o que tinha acontecido, anulando os sentimentos para não entrar em contato com todo o sofrimento que lhe foi gerado, lançando mão de uma defesa dissociativa.

 

Ao longo do tempo, ele entrou em contato com toda a dor que essa vivência gerou nele, e ao conseguir primeiro nomear e discriminar o que de fato aconteceu, conseguiu aos poucos ter conversas importantes com a mãe sobre a experiência de profundo desamparo que sentiu ao não ser protegido por ela durante a infância e adolescência.

 

É pela função transcendente que podemos integrar as polaridades, é o terceiro elemento que surge unificando o par de opostos. No caso desse paciente, ele percebeu que chegou até a ter prazer com o ato sexual, mas que nem por isso ele o gerou ou foi responsável pelo ato. Porém, isso fez parte do que aconteceu e ele conseguiu compreender a responsabilidade dos adultos envolvidos.

 

Como função estruturante da consciência, Gallardo traz que:

 

A possibilidade de elaborar os símbolos que estão na sombra nos dá a possibilidade de integrar o divino Self, integrando-se no dinamismo da alteridade e permitindo a supremacia do amor acima do ódio, dando novas possibilidades de desenvolvimento através do perdão do outro e/ou do perdão a si mesmo. (Tradução livre Gallardo, 2019, p.45)

 

Ao perdoar o outro, conseguimos também nos perdoar, como diz a passagem bíblica. Porém, não como obrigação moral, e sim a partir de um profundo processo de elaboração que vem de dentro para fora e não ao contrário, como quando ocorre de forma imposta pela religião ou pela cultura. O espaço para a compaixão e a empatia pode surgir justamente quando se tem contato com a dor, quando se valida a experiência, o que inclusive idealmente vem junto com um pedido de perdão de quem gerou o dano e é fruto da função ética.

 

3. Autoperdão

 

Se não tivéssemos avançado e cometido esses erros e colidido contra aquelas paredes, teríamos certamente permanecido crianças. Rever a vida a partir da posição privilegiada da segunda metade dela requer a compreensão e o perdão do inevitável crime da inconsciência. Mas deixar de ficar consciente na segunda metade da vida significa cometer um crime imperdoável. (Hollis, 1997, p.27)

 

No exercício da profissão de psicoterapeuta escuto muitos relatos de pessoas que não conseguem se perdoar por escolhas, atitudes e falas do passado, e ficam presas a isso carregando cicatrizes na alma pela vida afora. O que muitas vezes escapa a essas pessoas é que elas só são o que são hoje justamente porque elas viveram o que viveram. 

 

O ditado popular diz que muitos caminhos levam a Roma, porém ao não ver que o erro e o pecado também fazem parte desse caminho, ficamos aprisionados no passado. É como se ao ser diferente do imaginado, não tivesse espaço para ser.  Em A Natureza da Psique, Jung escreve sobre o quanto nos escapa a possibilidade se sermos o ideal imaginado:

 

A psique não é um fenômeno da vontade, mas natureza que se deixa modificar com arte, ciência e paciência em alguns pontos, mas não se deixa transformar num artifício, sem profundo dano ao ser humano. O homem pode transformar-se num animal doente, mas não em um ser ideal imaginado. (Jung, 2013, § 831)

 

O perdão a si mesmo tem a ver com a função estruturante da exigência. Como já mencionado, toda função estruturante pode ser criativa e defensiva. Buscarmos fazer o nosso melhor nos impulsiona a irmos além e superarmos as dificuldades da “travessia perigosa”. Porém, ficar preso ao ideal, exigindo mais do que é possível ou desejável, pode levar à automutilação e destruição. Se o fazer é tomado como o ser, fica difícil aceitar o erro, pois nesse caso o errar é tomado como ser errado e não como ter feito errado. A parte é tomada como o todo, amplificando muito o tamanho do erro e a dificuldade da tarefa de olhar para ele.

 

Guimarães Rosa disse, em Grande Sertão: Veredas, que “viver é muito perigoso… Porque aprender a viver é que é o viver mesmo… Travessia perigosa, mas é a da vida”.  Aprender que errar faz parte dessa travessia é um dos grandes aprendizados que podemos ter com o processo

 

Diferente do Cristianismo, o Budismo afirma que o único perdão possível é o conferido a si mesmo, nessa tradição o perdão ao outro é visto como um lugar de superioridade que não cabe na relação entre iguais. Por outro lado, nessa tradição espiritual também se fala da compaixão como no cristianismo e na possibilidade de arrependimento. A meu ver, é possível sim pensar no perdão ao outro. Para ilustrar o movimento de perdão a si mesmo, irei na sequência trazer o mito de Édipo.

 

Breve sinopse do Mito de Édipo

O mito de Édipo ficou mundialmente conhecido pela formulação feita por Freud sobre o incesto e o complexo de Édipo. De acordo com ele o desenvolvimento psicossexual da criança passa pelo filho sentir desejo por sua mãe, e pelo ódio e ciúme de seu pai. Dessa forma, apesar de muito conhecido, o mito geralmente é lembrado apenas pela parte em que Édipo mata o seu pai e casa-se com a sua mãe.

Indo além dessa parte tão conhecida, lembramos que o mito inicia com Laio, rei da cidade de Tebas e casado com Jocasta, sendo advertido pelo Oráculo de Delfos de que se tivesse filho ele o mataria e casaria com a própria mãe. Uma das explicações para essa maldição é que Laio anos antes é mandado para a corte de Pélops e lá se apaixona perdidamente por Crísipo, filho de Pélops, e rapta o garoto e foge com ele. Tal ato foi visto como um desrespeito com o anfitrião e se torna ainda mais grave quando Crísipo se suicida por não aguentar lidar com o seu próprio desejo, já que a homosexualidade era aceita como algo paralelo ao casamento, mas não como relacionamento principal. Assim Pélops, devastado pela morte do filho, lança a maldição de que se Laio tivesse um filho esse o mataria e desposaria a própria mãe.

Assim mesmo Laio decide ter um filho com Jocasta e quando nasce um menino ele se preocupa e resolve se livrar dele. Há duas versões sobre como isso aconteceu, mas irei focar na que é mais aceita, que diz que o bebê é exposto no monte Citerão com os calcanhares perfurados e os pés atados por uma correia. Sobre como Édipo é encontrado também há uma série de possibilidades, como Junito Brandão descreve abaixo:

Criado pelo pastor de Corinto, segundo uma variante, o qual o recebera do pastor de Laio no monte Citerão, ou encontrado por Peribeia junto às praias do mar em Corinto e levado para a corte de seu marido e rei local Pólibo, ou ainda conduzido para a mesma corte pelo pegureiro Forbas, o fato é que Édipo, na maioria das versões, foi criado e educado na corte de Corinto como filho de Pólibo e Mérope (nome de Peribeia na versão de Sófocles, Édipo Rei, 775, 990), que não tinham descendentes. (Brandão, 1987, p. 184)

Em Corinto, Édipo teve uma infância e adolescência tranquilas, mas ao completar a maioridade deixou a cidade e os seus pais. Os motivos para esse abandono variam também, mas o mais aceito é que durante um banquete um dos convidados chamou-o de plastòs, que quer dizer filho postiço, e apesar dos pais negarem ele foi até Delfos para tirar as dúvidas que passaram a assombrá-lo sobre a sua origem. O oráculo não respondeu a sua pergunta, mas lhe disse que iria matar o pai e casar-se com à própria mãe. Com intuito de evitar que a profecia fosse realizada ele decide não mais voltar a Corinto. Nesse caminho ele encontra a carruagem de Laio e seus servos que vinha no sentido contrário. Com violência eles tentam afastá-lo da estrada e Édipo reage como se estivesse fora de si e fere mortalmente Laio com o bastão que utilizava para ficar em pé.  O rei estava a caminho do Oráculo, pois Tebas estava sendo destruída por um monstro, a Esfinge, que na porta da cidade exigia que os que passavam por lá decifrasse o enigma e devorava os que não decifrassem. Laio parte em busca do conselho do Oráculo para livrar Tebas do monstro.

Ao seguir o seu caminho após o assassinato, Édipo chega até Tebas e encontra a esfinge que lhe pergunta: "Qual o animal que, possuindo voz, anda, pela manhã, em quatro pés, ao meio-dia, com dois e, à tarde, com três?". Édipo rapidamente responde que o ser humano é esse animal e assim a esfinge se autodestrói e a cidade fica livre da desgraça que a assolava.

Depois da morte do rei, o irmão de Jocasta assume o trono de Tebas. Porém rapidamente cede o trono ao destruidor da Esfinge e dessa forma a profecia se cumpre e Édipo se casa com a rainha/mãe.

O casal vive feliz até que Tebas é novamente abatida por uma peste e Édipo envia Creonte para novamente consultar o Oráculo de Delfos que recebe a seguinte resposta de Apolo: “a nódoa que mancha Tebas é o assassino de Laio”. Na busca pelo assassino Édipo consulta Tirésias, o adivinho cego que tudo sabia. Após ser insultado e pressionado pela resposta, o sábio revela que Édipo matara o pai e se casou com a própria mãe. Diante de tal revelação Édipo busca o escravo sobrevivente que acompanhava Laio no dia da sua morte, e ao ter a confirmação, provocou a própria cegueira e Jocasta se enforcou.

A partir daí, Édipo passa a buscar-se a si próprio. Guiado por Antígona, sua filha, peregrinou pela Grécia até chegar a Colono e ali percebeu que seria o lugar em que seu sofrimento iria acabar. Teseu, o grande herói ateniense, lhe concede proteção e Édipo se compromete a proteger Atenas de qualquer invasão tebana. Um dia sente que chegou a sua hora e se troca e faz as abluções e é acompanhado pelo rei de Atenas para o momento da sua morte: “a terra se abriu suavemente e Édipo retornou ao seio materno”. (Brandão, 1987, p. 269)

Leitura Simbólica do Mito

Ao conhecer o mito para além do que é mundialmente falado, fica claro que a tragédia começa com a atitude dos pais. Eles engravidam, sabendo da profecia do Oráculo. Depois se arrependem e decidem pela morte de Édipo, o que é planejado com crueldade, perfurando os pés do filho e o expondo em um monte. Por outro lado, Édipo, ao saber do seu destino, tenta de toda forma evitar que ele se realize, renunciando à convivência com os pais amorosos que lhe criaram.

Dessa forma podemos pensar que a atitude de Laio e Jocasta são de uma natureza diferente da de Édipo. Eles planejam e mandam executar a morte do filho; já Édipo é tomado pela situação e mata o pai no calor da emoção. Fazendo uma aproximação com o direito, o crime dos pais é doloso, ou seja, têm a intenção de matar, e o crime do filho é descrito como se estivesse em um nível alterado de consciência, o que remete aos crimes passionais, que são motivados por uma grande emoção. Trazendo para a psicologia, as defesas de Laio e Jocasta são psicopáticas e a de Édipo, neurótica.

Ao saber a verdade sobre a morte de Laio e a ascendência de Édipo, Jocasta se suicida, não por arrependimento, mas por vergonha do que tinha vindo à tona para toda a cidade. Já Édipo causa a sua própria cegueira e nela busca a si próprio:

Do ponto de vista simbólico, todavia, a cegueira que Édipo se infligiu possui um sentido mais profundo. As trevas externas geram a luz interna. A ¢nagnèrisi (anagnórisis), "a ação de reconhecer" e de reconhecer-se começa efetivamente a existir quando se deixa de olhar de fora para dentro e se adquire a visão de dentro para fora. Mergulhado externamente nas trevas, o herói se encontrou. Se Édipo, porque sabia, conquistou o poder, a hipertrofia desse mesmo poder sufocou-lhe o saber. Sua cegueira estabeleceu em definitivo a ruptura entre o saber e o poder: cego, o herói agora sabe, mas não pode. (Brandão, 1987, p.210)

Como aponta Byington (2015), Édipo perambula pela Grécia até achar o local em que viveria o fim do seu sofrimento; essa perambulação se aproxima bastante do que é vivido pelo personagem principal do romance Crime e Castigo, de Dostoiewski, em que Raskolnikow na prisão da Sibéria sofre e expia o homicídio que cometeu para só depois poder viver com o seu grande amor. Édipo expia a sua culpa através da perambulação e da discriminação que vive nos seus últimos anos de vida e ao ser convidado por seu filho para voltar para Tebas para aliar-se na luta contra Creonte, nega o convite pelo poder.

No livro Fundamentos da Psicologia Analitica Jung relata o caso de uma paciente que foi internada em um sanatório após a morte de sua filha. Ao atendê-la, percebe que tinha sido ela que tinha dado água contaminada para as crianças. Apesar de todo sofrimento que essa revelação gera, após algum tempo os sintomas melhoram e ela que era percebida como louca recebe alta do hospital e consegue seguir a sua vida.  

Essa passagem, bem como as estórias de Raskolnikow e Édipo mostram que para se perdoar é necessário entrar em contato com todo o mal cometido, expondo a sombra. O perdão liberta e possibilita que a vida flua e que possamos lidar com os próximos desafios, sendo assim um agente do processo de individuação, mas para isso é preciso passar pelo nigredo (fase da escuridão, da dor mais intensa, momento da tragédia). O trabalho de purificação, transformação, que passa pelo albedo, em que as coisas vão sendo elaboradas, até emergir na rubedo como uma nova consciência. Pular uma dessas fase significa colocar em risco a elaboração profunda.  

 

Referências Bibliográficas

AVIAN, Silvia. Perdão: uma vivência de liberdade. Trabalho de conclusão de curso da formação de analistas da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica.  São Paulo, 74, 2007.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2001.

BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2015.

BRANDÃO, Junito. Mitologia Grega, vol. II. Petrópolis: Ed. Vozes, 1989.

BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Psicologia Simbólica Junguiana: a viagem de humanização do cosmos em busca da iluminação. São Paulo: Linear B, 2015.

BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Inveja criativa: o resgate de uma força transformadora da civilização; introdução ao estudo das funções estruturantes pela psicologia simbólica. São Paulo: Religare, 2002.

JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Editora Vozes Limitada, 2011. 

JUNG, Carl Gustav. Fundamentos da psicologia analitica. 2003.

JUNG, Carl Gustav. Fundamentos da psicologia analítica. In: Fundamentos da psicologia analítica. 2003. p. 177-177.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Editora Vozes Limitada, 2015. 

HONORABILIDADE, EXCELÊNCIA E. CARLOS AMADEU BOTELHO BYINGTON (1933-2019). Junguiana, v. 37, n. 2, p. 7-12.

 
 
 

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Psicóloga Larissa Gontijo 

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